terça-feira, 11 de janeiro de 2022



Acontece que há fábulas urdidas de porvir.
O batom que a boca espera no camarim do próximo palco.
A melodia que ouço do pássaro que ainda não sabe que vai pousar
na varanda do quinto andar.
O sal que lambo da pele depois do mergulho na onda que se há-de formar
antes da espuma.
Conjecturar o futuro é ofício ancestral. Contou-me uma pedra sobre um auroque
sulcado na rocha por um homem
que desenhava à luz que lhe crepitava no peito,
com certeza por saber já dos meus olhos vindouros de espanto ao chegar perto da figura.
Nada sabemos sobre quem imaginou quem primeiro,
se foi seu sorriso nómada que atravessou milénios
ou meu olhar que espreitou por cima do ombro
e tropeçou no paleolítico.
Mas a poesia rupestre,
quase impossível linguagem gravada sobre o tempo,
ora côncavo, ora convexo,
sopra para longe os sedimentos que empoeiram os corações
e vem à tona do xisto uma missiva
e respira que o amor é um círculo,
ora côncavo, ora convexo,
que a escrita do mundo reproduz.
Entontece-nos no mar a ondulação do desejo,
a florescência é guardiã do perfume da terra
e o firmamento é testemunha imperturbável da continuidade
que cintila entre o acaso e o destino,
inaugurando a permanência,
afirmando esferas e gravuras celestes num gerúndio mais que perfeito.
Sob a arqueologia do amor,
vou notando que o sal que lambo da pele é o mesmo do tempo em que o oceano era todo um,
o canto que ouço é de ave que vem migrando pela rosa dos sete ventos,
e no camarim, na antecâmara dos sonhos,
talvez venha a dar conta que a minha boca é artefacto inventado em pedra lascada
e, sendo assim, talvez a cor do batom até já esteja escolhida
e, quem sabe,
o primeiro beijo da humanidade tenha sido meu.
_

Joana Manarte


Fotografia: Cristina Costa

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Let's go crazy



regressava a casa, o pensamento a inaugurar a noite.
liguei o rádio do carro, mudei para a opção CD e em poucos segundos
Prince fez-me olhar nos olhos do retrovisor
dearly beloved
we are gathered here today to get through this thing called life.*
saí do espelho com determinação de passerelle e logo espetei a imaginação contra um camião do lixo.
a via era de sentido único,
uma faixa de rodagem
sem escapatória possível.
desliguei o motor, observava as movimentações
os fatos a luzir como mirada de gato
a cor que parece sempre duvidar entre o verde e o amarelo
os gestos repetidos até à eficiência
o voo avulso dos sacos de plástico, sobras da vida a pairar sobre as cabeças.
saí do carro para me ver do alto, ao volante, atenta à performance tão citadina,
tão noturna, tão antiga.
a imagem assomou-se como experiência velha, já por outras vezes vivida naquela mesma rua, quem sabe sobre os mesmos paralelos, num tempo em que o banco de trás era o meu reinado.
electric word, life.
it means forever.*
entre a luz dos piscas que aparecia e desaparecia numa cadência hipnótica
a memória interrompeu a penumbra:
sempre gostei de apanhar os lixeiros, são os meus heróis,
saiu-me com voz de criança.
entrava-me pelo olhar adentro uma salvífica bondade alheia, como se vestissem a missão refletora de limpar uma casa que era comum a toda a gente e então a admiração ganhava forma e no meu imaginário
corria e galgava os passeios com eles
e num salto atlético pendurava-me no camião
e a cidade era nossa
e ia acordar mais bonita para todos por causa disso.
gesticularam um pedido de desculpa aflito
enquanto um contentor suspenso perigava perto da caixa aberta do camião.
acenei que não havia problema.
domado o contentor, arrancaram.
liguei o motor e segui-os até ao entroncamento,
a partir do qual cada veículo seguiu seu caminho.
eles com suas ideias, eu com minhas ideias sobre eles.
a guitarra de Prince eletrificava a cidade deserta,
durante o resto do trajeto os edifícios vibravam como colunas de som à passagem do carro
e dentro do habitáculo - que é como quem diz em minha cabeça -
cogitavam muito alto restos de variações sobre os lixeiros, hesitando entre o que era real e o que era fantasia de criança.
abrandei ao ver ao longe o sinal vermelho. junto aos semáforos, aguardando a luz verde,
novo camião do lixo na faixa da esquerda. um carro escuro na faixa da direita, à minha frente.
agarrados à traseira do camião, dois homens, um em cada ponta,
tinham o rosto voltado para o mesmo lado.
um deles parecia ter começado a falar com alguém do outro carro. gesticulava alto
abriu o sorriso
abriu-me a curiosidade.
depois de baixar o volume
e baixar o vidro
percebi que do carro escuro saía um samba sísmico
que se sentia no asfalto
e os lixeiros, luzentes,
agitavam os corpos
pendurados na alegria que ainda se via refletir ao longe, depois da noite desaparecer ao virar da esquina.
"let's go crazy!"*,
cantou o rádio,
e vi meu sorriso de menina a sobejar no banco de trás, exibindo profecias.
_

Joana Manarte
*Do tema "Let's go crazy", de Prince

segunda-feira, 30 de março de 2020

varanda da imaginação

haja varandas
com vista para a imaginação.

é tempo de restrição de movimento e
no entanto
coço o nariz para agarrar uma ideia
levo a mão à boca para tirar a palavra da ponta da língua
esfrego os olhos para mudar de paisagem
e sem intenção infrinjo as normas
à vista de toda a gente
na varanda onde ninguém me vê
com vista para a imaginação.

este ano a primavera trouxe bandos de caixões e caixões e caixões
em camiões que nem sabem para onde ir.
que ideia mais absurda à beira de um pássaro que acabou de aqui passar decidido
a furar a morte com uma melodia nova no bico
largada de propósito
na varanda onde ninguém me vê
com vista para a imaginação.

se me humedecem os olhos ao pensar nos que me são hábito antigo que agora não posso tocar
por um instante acho que vejo o mar daqui
e deslumbro-me por nunca ter dado conta disso antes
na varanda onde ninguém me vê
com vista para a imaginação.

não me critiquem por me encantar em tempo de trevas
porque já que os amores e os amigos me inventaram o atlântico sem avisar
estendo o braço até ao horizonte
viro à esquerda
ao chegar ao Algarve
esquerda outra vez
navego a mão pelos mares que nos unem
e quando chego à ilha de Lesbos
- ou ao terror do inferno em pleno olimpo -
e depois ao hemisfério onde estão sempre
"os outros"
fico ali
à espera de agarrar o abandono de mil e um corpos e de os pôr em quarentena num só abraço sem pronomes pessoais que nos separem pelo sinal da santa cruz
livre-nos deus nosso senhor
dos nossos inimigos, ai cuidado
que não se pode tocar na cara
nem com a religião dos que não crêem
mas não faz mal desobedecer sem má fé
na varanda onde ninguém me vê
com vista para a imaginação.

anoiteceu. desinfeto o céu, aponto o comando para o alto e carrego no botão para ver as notícias do mundo.
pelos vistos
há astronautas embriagados de
movimento que mergulham
num regresso a qualquer coisa nova,
há semínimas fluorescentes alinhadas pelo globo
como quem marca um compasso ancestral e indica a forma da revolução
e levo as mãos à boca num espanto de entendimento
já sei que não se pode
mas porra
não nos confisquem os rituais que nos fazem humanos
não sei de repente usar máscara nas emoções
muito menos quando vejo que
se mexe
luminoso e lento e lúcido
o planisfério e suas terras interrompidas
e a sair das bordas dos continentes
vêem-se remos e
nas pontas dos remos
gente a remar continentes
e com isso o prenúncio de um conto
que adormece em pandemia e acorda em pangeia.
pelo menos é o que se vê daqui
da varanda onde ninguém me vê
com vista para a imaginação.
_

Joana Manarte
(texto escrito para o movimento #poesiapandemia | 3º prémio do X Concurso Nacional de Poesia na Biblioteca, Condeixa, 2021)

terça-feira, 11 de junho de 2019


Conta o meu pai que, nos anos 60, testemunhou histórias do “Salto” em que os emigrantes ilegais que saíam de Trás-Os-Montes, em busca de melhor sobrevida noutros países, pagavam aos passadores para encetarem uma jornada clandestina que os levaria para fora de uma geografia minada de injustiça e opressão. Um dos homens, ao despedir-se rumo a França, quis aprender a falar francês, apenas o imprescindível: du pain et des pommes de terre. Pão e batatas. De contrabandista em contrabandista, passavam as fronteiras do espaço exterior e do espaço interior, como se o caminho que percorriam mapa afora estivesse encostado a um caminho que faziam por si adentro, de tal forma que não era possível fazer a viagem esperada sem fazer a mais imprevisível de todas: a interior. Passavam tormentas grandes, concentradas em detalhes. A espera diurna fazia parte da fuga noturna. Esperavam, de roupas molhadas, num espaço mais apertado do que a incerteza. Deitavam-se escondidos num palheiro dez ou mais homens, todos virados para o mesmo lado, com os corpos encaixados uns nos outros. À palavra “virar” viravam-se ao mesmo tempo para o outro lado para conseguirem caber todos na linha do destino, que os levaria, de fronteira em fronteira, ao alívio anunciado. Na terra de onde partiam, acendiam-se então velas ao fim de alguns dias e – como quase sempre – a luz era sinal de algo mais, e toda a aldeia percebia na pequena chama que o homem da mulher que acendeu a vela teria chegado são e salvo ao destino, cumprida fora a prece a Nossa Senhora da Graça.

Mais tarde, de regresso à terra, os homens contavam-se em fantasias vitoriosas e omitiam a realidade embaraçosa, porque lhes poderia ferir a honra assumir as agruras e as vulnerabilidades arquitetadas em bidonvilles. Fugir da pobreza e dar de caras com outra pobreza era desilusão a mais para tanta coragem ilegal. Faziam um pacto de esquecimento pessoal. De si para consigo, em disfarçada solidão.
O silêncio que atravessa estas histórias lembrou-me um filme que vi recentemente, "O Silêncio dos Outros", um documentário comovente sobre a guerra civil espanhola e as sequelas do franquismo nos tempos de hoje. Finda a ditadura, foi feito o pacto do esquecimento, na lógica de prevenir que fossem alimentados ódios e que o país se dividisse em fações de rancor. Acontece que esse pacto permaneceu até agora e enquanto escrevo sei que há um fantasma a pairar sobre Espanha, que põe tanto ar na voz das vítimas de Franco que o que se ouve delas parece que continua a ser segredo. O pacto do esquecimento político transformou num sussurro frágil as narrativas de crimes contra a humanidade, de filhos que ainda procuram as mães para sempre perdidas em valas comuns, de pais encontrados em ossos depois de uma vida a lutar pela regeneração da dignidade, de mães cujo primeiro choro dos bebés foi roubado à nascença.

O esquecimento é um manto perigoso. A memória é feita de vozes e ser voz e ouvir a voz dos silenciados é ofício de suprema importância para circularmos pelos sapatos uns dos outros. As histórias pessoais são linguagem universal que nos traz uma certa clarividência sobre como pertencemos todos ao mesmo mundo.
Afinal de contas, podíamos reler este texto mudando os lugares, os tempos e os protagonistas, que as histórias não perdiam a verdade no que de mais profundo transmitem sobre a humanidade. Isso quer dizer que, estejamos onde estivermos, os outros somos nós.


Joana Manarte





Fotografia: Yannis Behrakis.
União Europeia. Data: "Hoje"

quarta-feira, 25 de abril de 2018

25 abril sempre



A cortina translúcida deixou entrar
a manhã sem pedir licença. À custa
de tamanha irreverência
a luz de abril entornou a primavera
no teu rosto. Dormias. Não há só
gaivotas em terra quando um homem
se põe a sonhar. Via-se bem a que
costuma desenhar-te a boca naquela posição
suspensa no horizonte de quem voa para um
destino que inventou longínquo
para não chegar. Eu bem que repreendia
o poema que batia na vidraça para que
não te acordasse, mas o que parecia ser
só mais um amanhecer virou revolução
de mil despertares e das penas do travesseiro
saíram centenas de pássaros de uma assentada.
Da novidade ficou a tua gaivota rubra a ensinar
a cor dos cravos e a janela para sempre aberta
a lembrar das aves que não têm dono.

_
Joana Manarte

Porto, 25 Abril 2018


domingo, 19 de novembro de 2017

Árvore



Tens comboios nas mãos quando as pousas 
em mim. Vão para todo o lado e eu deixo. 
E saem-te penas dos pés quando andas. 
Tens estilo. 

II 

Gosto de ir ao cinema na tua boca. 
Apoio a cabeça nos cotovelos e fico ali especada em frente à tua boca. 
Aberta. E um filme a passar lá dentro, no escuro. 

III 

Nunca te contei isto, mas sonhei que dançaste comigo numa rotunda. 
Chovia, era de noite, passava um carro de vez em quando. 
Quando acordei tinha a roupa molhada. Era de noite. Passava um carro 
de vez em quando e tu estavas a dançar comigo numa rotunda. 

IV 

Tens nuvens nos braços. Reparei nisso a primeira vez que me abraçaste 
e eu não sabia do chão mas não caí. 


Todas as estátuas com quem falei invejam-te a beleza 
que trazes no corpo e no rosto e as pedras gritam 
que és escultura em movimento. 

VI 

A tua sensibilidade arrepia-me os cabelos. Levantam-se 
em alvoroço, como se houvesse vento de baixo para cima, 
e exibem-se para ti como plantas vaidosas a cortejar o sol. 

VII 

Sabes desenhar com a imaginação, que eu uma vez perguntei-te 
sobre o amor e tu explicaste-mo com matemática. Ou com poesia, 
que é a mesma coisa. E tu lá desenhaste o infinito à frente 
e atrás dos meus olhos e eu nem sabia que sabias desenhar assim. 

VIII 

Tu nunca dizes de chofre o que sabes fazer. Mas, 
por exemplo, uma vez puxaste-me para ti e deixaste 
cair o céu todo no meu ouvido. Ficou noite e eu sorri 
muito, já não tinha cara que chegasse. 

IX 

O teu peito é um oceano. Gosto de o olhar, 
de inventar barcos pequeninos a navegar e de 
me deitar toda nele a ouvir a água. 


Põe-me entre a tua pele e a areia. Molhada. Eu. A areia. Eu. 

Eu em posições de oferta. Jugular em riste. 

Pernas de acrobata. Costas em arco e flecha. 
Frutos no peito. Mãos em flor. Árvore. É isso. 
A ti ofereço-me em árvore. 
Chegas-te perto e confundes-me as estações. 
Já tenho a boca tonta de vinho e outono e 
ainda sinto o mar a entrar-me entre as pernas.



Joana Manarte
[Texto vencedor do 1º prémio do Concurso Nacional de Textos de Amor Manuel A. Pina 2017]

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Se eu soubesse falar de amor



Se eu soubesse falar de amor, falava de guarda-chuvas
como o Kusturica.
Sempre gostei de guarda-chuvas. Talvez goste ainda mais de andar à chuva, mas sempre gostei de guarda-chuvas e do universo particular que nasce de cada vez que se abre um. Ele usava um guarda-chuva para se proteger das balas de uma guerra que não acabava nunca e à custa de um burro ágil e de um tecto de nylon impermeável ao ódio escapava ileso daqueles desentendimentos de chumbo a céu aberto, onde as bombas se cruzam com os pássaros.

Se eu soubesse falar de amor, falava do leite
como o Kusturica.
Em cima do burro transportava vasilhas de lata cheias de leite, que só podia ser amor em estado líquido. Então ele andava com aquilo de um lado para o outro e nós ficámos com a ideia de que ele estava a levar a todos o alimento certo, até porque também foi por causa do leite que ele conheceu o amor dela. Acho que de desde que a viu - quando ela estava a ordenhar a vaca - o leite ficou ainda mais carregado do que de melhor podemos dar uns aos outros porque até as cobras bebiam do leite. Numa concavidade pouco funda que havia na terra batida, num troço do caminho que ele percorria várias vezes, nessa concavidade ele vertia algum leite e a cobra rastejava a curiosidade até à poça branca e à frente do espanto dele mergulhava a cabeça e ficava ali a beber até virar um bicho de paz que lhe viria a salvar a vida mais tarde.

Se eu soubesse falar de amor, falava dos animais e das plantas
como o Kusturica.
É que nem a alvura dos gansos manchada de sangue alheio e o cheiro fétido que a guerra lhes impregnou nas penas o fez perder a convicção no amor como a única salvação possível para a humanidade. Ela chegou a dizer-lhe enquanto o carregava ferido às costas que "a única coisa que faz sentido é amar alguém, seja de que maneira for". Ele não temia que um urso lhe viesse tirar os gomos de laranja da boca ou que um falcão fosse o seu melhor amigo e por que havia de o temer se as abelhas os livraram de mão predadora, as abóboras lhes mantiveram a felicidade à tona e as canas de bambu lhes serviram de respiradouro quando a  morte espreitava à superfície da água?

Se eu soubesse falar de amor, falava das pedras
como o Kusturica.
No momento em que ele ia dar um passo voluntário para se fazer explodir numa mina, um velho pastor agarrou-o e repreendeu-o pela intenção. Se ele fizesse isso, quem ficaria para se lembrar dela, da mulher que morreu num voo de explosivos? Quem continuaria a encontrá-la em cada gesto de cumplicidade com a natureza? Quem cobriria de pedras claras o extenso terreno de onde ela voou para que, de uma vez por todas, o amor possa ser visto do espaço?

Se eu soubesse falar de amor, gostava de saber explicar que o milagre está nas nossas mãos.


Joana Manarte