segunda-feira, 30 de março de 2020

varanda da imaginação

haja varandas
com vista para a imaginação.

é tempo de restrição de movimento e
no entanto
coço o nariz para agarrar uma ideia
levo a mão à boca para tirar a palavra da ponta da língua
esfrego os olhos para mudar de paisagem
e sem intenção infrinjo as normas
à vista de toda a gente
na varanda onde ninguém me vê
com vista para a imaginação.

este ano a primavera trouxe bandos de caixões e caixões e caixões
em camiões que nem sabem para onde ir.
que ideia mais absurda à beira de um pássaro que acabou de aqui passar decidido
a furar a morte com uma melodia nova no bico
largada de propósito
na varanda onde ninguém me vê
com vista para a imaginação.

se me humedecem os olhos ao pensar nos que me são hábito antigo que agora não posso tocar
por um instante acho que vejo o mar daqui
e deslumbro-me por nunca ter dado conta disso antes
na varanda onde ninguém me vê
com vista para a imaginação.

não me critiquem por me encantar em tempo de trevas
porque já que os amores e os amigos me inventaram o atlântico sem avisar
estendo o braço até ao horizonte
viro à esquerda
ao chegar ao Algarve
esquerda outra vez
navego a mão pelos mares que nos unem
e quando chego à ilha de Lesbos
- ou ao terror do inferno em pleno olimpo -
e depois ao hemisfério onde estão sempre
"os outros"
fico ali
à espera de agarrar o abandono de mil e um corpos e de os pôr em quarentena num só abraço sem pronomes pessoais que nos separem pelo sinal da santa cruz
livre-nos deus nosso senhor
dos nossos inimigos, ai cuidado
que não se pode tocar na cara
nem com a religião dos que não crêem
mas não faz mal desobedecer sem má fé
na varanda onde ninguém me vê
com vista para a imaginação.

anoiteceu. desinfeto o céu, aponto o comando para o alto e carrego no botão para ver as notícias do mundo.
pelos vistos
há astronautas embriagados de
movimento que mergulham
num regresso a qualquer coisa nova,
há semínimas fluorescentes alinhadas pelo globo
como quem marca um compasso ancestral e indica a forma da revolução
e levo as mãos à boca num espanto de entendimento
já sei que não se pode
mas porra
não nos confisquem os rituais que nos fazem humanos
não sei de repente usar máscara nas emoções
muito menos quando vejo que
se mexe
luminoso e lento e lúcido
o planisfério e suas terras interrompidas
e a sair das bordas dos continentes
vêem-se remos e
nas pontas dos remos
gente a remar continentes
e com isso o prenúncio de um conto
que adormece em pandemia e acorda em pangeia.
pelo menos é o que se vê daqui
da varanda onde ninguém me vê
com vista para a imaginação.
_

Joana Manarte
(texto escrito para o movimento #poesiapandemia | 3º prémio do X Concurso Nacional de Poesia na Biblioteca, Condeixa, 2021)

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