quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Let's go crazy



regressava a casa, o pensamento a inaugurar a noite.
liguei o rádio do carro, mudei para a opção CD e em poucos segundos
Prince fez-me olhar nos olhos do retrovisor
dearly beloved
we are gathered here today to get through this thing called life.*
saí do espelho com determinação de passerelle e logo espetei a imaginação contra um camião do lixo.
a via era de sentido único,
uma faixa de rodagem
sem escapatória possível.
desliguei o motor, observava as movimentações
os fatos a luzir como mirada de gato
a cor que parece sempre duvidar entre o verde e o amarelo
os gestos repetidos até à eficiência
o voo avulso dos sacos de plástico, sobras da vida a pairar sobre as cabeças.
saí do carro para me ver do alto, ao volante, atenta à performance tão citadina,
tão noturna, tão antiga.
a imagem assomou-se como experiência velha, já por outras vezes vivida naquela mesma rua, quem sabe sobre os mesmos paralelos, num tempo em que o banco de trás era o meu reinado.
electric word, life.
it means forever.*
entre a luz dos piscas que aparecia e desaparecia numa cadência hipnótica
a memória interrompeu a penumbra:
sempre gostei de apanhar os lixeiros, são os meus heróis,
saiu-me com voz de criança.
entrava-me pelo olhar adentro uma salvífica bondade alheia, como se vestissem a missão refletora de limpar uma casa que era comum a toda a gente e então a admiração ganhava forma e no meu imaginário
corria e galgava os passeios com eles
e num salto atlético pendurava-me no camião
e a cidade era nossa
e ia acordar mais bonita para todos por causa disso.
gesticularam um pedido de desculpa aflito
enquanto um contentor suspenso perigava perto da caixa aberta do camião.
acenei que não havia problema.
domado o contentor, arrancaram.
liguei o motor e segui-os até ao entroncamento,
a partir do qual cada veículo seguiu seu caminho.
eles com suas ideias, eu com minhas ideias sobre eles.
a guitarra de Prince eletrificava a cidade deserta,
durante o resto do trajeto os edifícios vibravam como colunas de som à passagem do carro
e dentro do habitáculo - que é como quem diz em minha cabeça -
cogitavam muito alto restos de variações sobre os lixeiros, hesitando entre o que era real e o que era fantasia de criança.
abrandei ao ver ao longe o sinal vermelho. junto aos semáforos, aguardando a luz verde,
novo camião do lixo na faixa da esquerda. um carro escuro na faixa da direita, à minha frente.
agarrados à traseira do camião, dois homens, um em cada ponta,
tinham o rosto voltado para o mesmo lado.
um deles parecia ter começado a falar com alguém do outro carro. gesticulava alto
abriu o sorriso
abriu-me a curiosidade.
depois de baixar o volume
e baixar o vidro
percebi que do carro escuro saía um samba sísmico
que se sentia no asfalto
e os lixeiros, luzentes,
agitavam os corpos
pendurados na alegria que ainda se via refletir ao longe, depois da noite desaparecer ao virar da esquina.
"let's go crazy!"*,
cantou o rádio,
e vi meu sorriso de menina a sobejar no banco de trás, exibindo profecias.
_

Joana Manarte
*Do tema "Let's go crazy", de Prince