terça-feira, 11 de janeiro de 2022



Acontece que há fábulas urdidas de porvir.
O batom que a boca espera no camarim do próximo palco.
A melodia que ouço do pássaro que ainda não sabe que vai pousar
na varanda do quinto andar.
O sal que lambo da pele depois do mergulho na onda que se há-de formar
antes da espuma.
Conjecturar o futuro é ofício ancestral. Contou-me uma pedra sobre um auroque
sulcado na rocha por um homem
que desenhava à luz que lhe crepitava no peito,
com certeza por saber já dos meus olhos vindouros de espanto ao chegar perto da figura.
Nada sabemos sobre quem imaginou quem primeiro,
se foi seu sorriso nómada que atravessou milénios
ou meu olhar que espreitou por cima do ombro
e tropeçou no paleolítico.
Mas a poesia rupestre,
quase impossível linguagem gravada sobre o tempo,
ora côncavo, ora convexo,
sopra para longe os sedimentos que empoeiram os corações
e vem à tona do xisto uma missiva
e respira que o amor é um círculo,
ora côncavo, ora convexo,
que a escrita do mundo reproduz.
Entontece-nos no mar a ondulação do desejo,
a florescência é guardiã do perfume da terra
e o firmamento é testemunha imperturbável da continuidade
que cintila entre o acaso e o destino,
inaugurando a permanência,
afirmando esferas e gravuras celestes num gerúndio mais que perfeito.
Sob a arqueologia do amor,
vou notando que o sal que lambo da pele é o mesmo do tempo em que o oceano era todo um,
o canto que ouço é de ave que vem migrando pela rosa dos sete ventos,
e no camarim, na antecâmara dos sonhos,
talvez venha a dar conta que a minha boca é artefacto inventado em pedra lascada
e, sendo assim, talvez a cor do batom até já esteja escolhida
e, quem sabe,
o primeiro beijo da humanidade tenha sido meu.
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Joana Manarte


Fotografia: Cristina Costa