sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Se eu soubesse falar de amor



Se eu soubesse falar de amor, falava de guarda-chuvas
como o Kusturica.
Sempre gostei de guarda-chuvas. Talvez goste ainda mais de andar à chuva, mas sempre gostei de guarda-chuvas e do universo particular que nasce de cada vez que se abre um. Ele usava um guarda-chuva para se proteger das balas de uma guerra que não acabava nunca e à custa de um burro ágil e de um tecto de nylon impermeável ao ódio escapava ileso daqueles desentendimentos de chumbo a céu aberto, onde as bombas se cruzam com os pássaros.

Se eu soubesse falar de amor, falava do leite
como o Kusturica.
Em cima do burro transportava vasilhas de lata cheias de leite, que só podia ser amor em estado líquido. Então ele andava com aquilo de um lado para o outro e nós ficámos com a ideia de que ele estava a levar a todos o alimento certo, até porque também foi por causa do leite que ele conheceu o amor dela. Acho que de desde que a viu - quando ela estava a ordenhar a vaca - o leite ficou ainda mais carregado do que de melhor podemos dar uns aos outros porque até as cobras bebiam do leite. Numa concavidade pouco funda que havia na terra batida, num troço do caminho que ele percorria várias vezes, nessa concavidade ele vertia algum leite e a cobra rastejava a curiosidade até à poça branca e à frente do espanto dele mergulhava a cabeça e ficava ali a beber até virar um bicho de paz que lhe viria a salvar a vida mais tarde.

Se eu soubesse falar de amor, falava dos animais e das plantas
como o Kusturica.
É que nem a alvura dos gansos manchada de sangue alheio e o cheiro fétido que a guerra lhes impregnou nas penas o fez perder a convicção no amor como a única salvação possível para a humanidade. Ela chegou a dizer-lhe enquanto o carregava ferido às costas que "a única coisa que faz sentido é amar alguém, seja de que maneira for". Ele não temia que um urso lhe viesse tirar os gomos de laranja da boca ou que um falcão fosse o seu melhor amigo e por que havia de o temer se as abelhas os livraram de mão predadora, as abóboras lhes mantiveram a felicidade à tona e as canas de bambu lhes serviram de respiradouro quando a  morte espreitava à superfície da água?

Se eu soubesse falar de amor, falava das pedras
como o Kusturica.
No momento em que ele ia dar um passo voluntário para se fazer explodir numa mina, um velho pastor agarrou-o e repreendeu-o pela intenção. Se ele fizesse isso, quem ficaria para se lembrar dela, da mulher que morreu num voo de explosivos? Quem continuaria a encontrá-la em cada gesto de cumplicidade com a natureza? Quem cobriria de pedras claras o extenso terreno de onde ela voou para que, de uma vez por todas, o amor possa ser visto do espaço?

Se eu soubesse falar de amor, gostava de saber explicar que o milagre está nas nossas mãos.


Joana Manarte

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Bica e João



how deep is the ocean?
how high is the sky?
a partir de quando é que um nome consegue ser adjectivo?



Carlos Bica & João Paulo Esteves da Silva
Braga, 2016

segunda-feira, 27 de junho de 2016

as rosas não falam









deve-se falar com as plantas
dizem.
são gravadores de rezas
como os santos de barro.
mas entre santos e flores
é melhor conversar com flores.
para além de não terem olhos
fixos num sítio que nem a imaginação vê
a linguagem dos aromas
está muito mais perto do amor.
queixo-me às rosas
que bobagem... as rosas não falam!
simplesmente as rosas exalam
o perfume que roubam de ti.*
o que acontece com as flores
fica entre as flores mas
uma pétala pode mais do que o silêncio
dizem.


Joana Manarte
[*excerto de 'As rosas não falam', de Cartola]


domingo, 24 de abril de 2016

our name is Prince




este é um príncipe dos plebeus. e dos aristocratas.
da comunhão de géneros e raças e classes.
Prince não fala de libertinagem. esbanja libertação.
a mestria com que brincou com o pecado soltou
os grilhões a meio hemisfério colonizado por tabus.
abatia a tiro os 7 capitais de cada vez que a tarola soava o PÁ! mais convicto de sempre
e o sorriso solto de bom bandido brilhava em cima do palco como quem ostenta a certeza
do groove mais perfeito da natureza.
Prince é uma pistola de confetis
e é de arma em punho que canta que
toda a recta pode ser a curva mais sumptuosa da geometria dos corpos
e numa espécie de narcisismo travesso
que nos servia em bandeja
apregoou mais respeito próprio e amor ao próximo do que qualquer
livro de auto-ajuda ou catecismo de bom comportamento.
Prince é completamente música e completamente festa e completamente para todos
porque ele sabia que não há nada mais sexy do que a alegria.
Prince não se consegue chorar.
Prince dança-se. inexoravelmente.


Joana Manarte


quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Ground Control to Major Tom



Eles nunca tinham morrido, pois não? Os heróis das histórias.
Nada nos habitua à morte de um herói porque nunca foi preciso chorá-los.
E mais uma vez é ele que dá o primeiro passo.
Nada nos fez pensar antes na mortalidade de David Bowie.
Alguém que se passeava com aquele ar de imortal não nos deixou sequer equacionar isso.
E de repente acordamos com a notícia, emocionamo-nos antes de acabarmos de ler "Morreu David Bow..." até ao fim e depois somos apanhados outra vez de surpresa por nos emocionarmos assim tão a sério e percebemos que há aqui qualquer coisa assombrosa a acontecer.

Bowie entrou-nos pela vida real adentro como um herói intergaláctico que vem em nome do bem.
Ele é o mundo que todos temos que ver, de preferência com um olho de cada cor.

Parece ficção, mas estamos a falar do mundo da diversidade, da aceitação natural da diferença e do diferente, do desejo da multiplicidade, da transcendência, da introspecção, da irreverência, da festa, da inquietação, da força libertadora da indefinição, das cores, dos outros, da imaginação, do respeito, da mudança, da surpresa, da criatividade, da vida, da arte, da clarividência da pertença cósmica, da liberdade e do amor.

Bowie personifica a utopia máxima, o mundo onde cabem todos.
O lugar onde somos, finalmente, todos diferentes e todos iguais.

Há quem não conheça David Bowie, há quem o tenha conhecido agora, há quem o conheça, há quem o conheça muito bem e há quem nunca venha a conhecê-lo, mas somos todos melhores por causa dele. Ser excêntrico é estar fora do centro e ele não só saía do centro como criava um novo centro de gravidade para depois sair dele outra vez e assim sucessivamente e enquanto se transformava levava o planeta com ele e, sem darmos conta, mudou-nos a todos (mesmo aos que não sabem quem ele é) e à forma de nos vermos a nós próprios e de vermos os outros e de vermos o mundo.

Olhar para Bowie é olhar para um caleidoscópio que multiplica e distorce a realidade para nos hipnotizar por aí fora a coleccionar mais paisagens e mais pessoas.

A morte deve ser só mais uma persona, só mais um figurino estranho que vestiu para significar mais um universo inteiro. Ofereceu-nos um imaginário à volta da morte que dá vontade de a entender como continuação. Se bem percebi, primeiro esmaga-nos com o inesperado e a seu tempo há-de fazer com que a estranheza nos seja familiar. Por agora continuo a carregar nos botões todos da torre de controlo à escuta de um sinal vindo do espaço, mas já acho que lhe fica bem esta nova maquilhagem de Blackstar e o enorme cabelo brilhante onde arrasta o resto do cosmos.

Talvez nunca cheguemos a descobrir completamente o quanto dele temos em nós, mas quando soube da descolagem fui fotografar o espelho:
estávamos lá todos, sem excepção, entre as estrelas.

E eu nem conheço bem o David Bowie.


Joana Manarte