terça-feira, 11 de junho de 2019


Conta o meu pai que, nos anos 60, testemunhou histórias do “Salto” em que os emigrantes ilegais que saíam de Trás-Os-Montes, em busca de melhor sobrevida noutros países, pagavam aos passadores para encetarem uma jornada clandestina que os levaria para fora de uma geografia minada de injustiça e opressão. Um dos homens, ao despedir-se rumo a França, quis aprender a falar francês, apenas o imprescindível: du pain et des pommes de terre. Pão e batatas. De contrabandista em contrabandista, passavam as fronteiras do espaço exterior e do espaço interior, como se o caminho que percorriam mapa afora estivesse encostado a um caminho que faziam por si adentro, de tal forma que não era possível fazer a viagem esperada sem fazer a mais imprevisível de todas: a interior. Passavam tormentas grandes, concentradas em detalhes. A espera diurna fazia parte da fuga noturna. Esperavam, de roupas molhadas, num espaço mais apertado do que a incerteza. Deitavam-se escondidos num palheiro dez ou mais homens, todos virados para o mesmo lado, com os corpos encaixados uns nos outros. À palavra “virar” viravam-se ao mesmo tempo para o outro lado para conseguirem caber todos na linha do destino, que os levaria, de fronteira em fronteira, ao alívio anunciado. Na terra de onde partiam, acendiam-se então velas ao fim de alguns dias e – como quase sempre – a luz era sinal de algo mais, e toda a aldeia percebia na pequena chama que o homem da mulher que acendeu a vela teria chegado são e salvo ao destino, cumprida fora a prece a Nossa Senhora da Graça.

Mais tarde, de regresso à terra, os homens contavam-se em fantasias vitoriosas e omitiam a realidade embaraçosa, porque lhes poderia ferir a honra assumir as agruras e as vulnerabilidades arquitetadas em bidonvilles. Fugir da pobreza e dar de caras com outra pobreza era desilusão a mais para tanta coragem ilegal. Faziam um pacto de esquecimento pessoal. De si para consigo, em disfarçada solidão.
O silêncio que atravessa estas histórias lembrou-me um filme que vi recentemente, "O Silêncio dos Outros", um documentário comovente sobre a guerra civil espanhola e as sequelas do franquismo nos tempos de hoje. Finda a ditadura, foi feito o pacto do esquecimento, na lógica de prevenir que fossem alimentados ódios e que o país se dividisse em fações de rancor. Acontece que esse pacto permaneceu até agora e enquanto escrevo sei que há um fantasma a pairar sobre Espanha, que põe tanto ar na voz das vítimas de Franco que o que se ouve delas parece que continua a ser segredo. O pacto do esquecimento político transformou num sussurro frágil as narrativas de crimes contra a humanidade, de filhos que ainda procuram as mães para sempre perdidas em valas comuns, de pais encontrados em ossos depois de uma vida a lutar pela regeneração da dignidade, de mães cujo primeiro choro dos bebés foi roubado à nascença.

O esquecimento é um manto perigoso. A memória é feita de vozes e ser voz e ouvir a voz dos silenciados é ofício de suprema importância para circularmos pelos sapatos uns dos outros. As histórias pessoais são linguagem universal que nos traz uma certa clarividência sobre como pertencemos todos ao mesmo mundo.
Afinal de contas, podíamos reler este texto mudando os lugares, os tempos e os protagonistas, que as histórias não perdiam a verdade no que de mais profundo transmitem sobre a humanidade. Isso quer dizer que, estejamos onde estivermos, os outros somos nós.


Joana Manarte





Fotografia: Yannis Behrakis.
União Europeia. Data: "Hoje"

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