terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A toada de Vivian | 3


(clicar em PLAY, p.f.)





a caixa que mudou o mundo

Joana Manarte




Vivian Maier
(sem data. New York, NY)



O homem da rua
fica só por teimosia
não encontra companhia
mas pra casa não vai, não
Em casa a roda já mudou
que a moda muda
a roda é triste
a roda é muda
em volta lá da televisão
No céu a lua
surge grande e muito prosa
dá uma volta graciosa
pra chamar as atenções
O homem da rua
que da lua está distante
por ser nego bem falante
fala só com seus botões

O homem da rua
com seu tamborim calado
já pode esperar sentado
sua escola não vem, não
A sua gente
está aprendendo humildemente
um batuque diferente
que vem lá da televisão 
No céu a lua
que não estava no programa
cheia e nua, chega e chama
pra mostrar evoluções
O homem da rua
não percebe o seu chamego
e por falta doutro nego
samba só com seus botões

Os namorados
já dispensam seu namoro
quem quer riso
quem quer choro
não faz mais esforço, não
E a própria vida
ainda vai sentar sentida
vendo a vida mais vivida
que vem lá da televisão
O homem da rua
por ser nego conformado
deixa a lua ali de lado
e vai ligar os seus botões
No céu a lua
encabulada e já minguando
numa nuvem se ocultando
vai de volta pros sertões


[Chico Buarque]


domingo, 30 de novembro de 2014

a mulher de branco


(clicar em PLAY, p.f.)
Ave Maria (Bach), Yo Yo Ma & Bobby McFerrin



à Marília




Às vezes começas na solidão. Continuas
a ser tu a verter-me leite nos olhos para me
acalmar a paisagem quando o futuro insiste
em rondar como um cão desconfiado.
Trazes a paz como um manto a cobrir-te
as costas. Pousas perto e mudas-me a roupa
à imaginação. Vou ao espelho. Acho que
fico bem assim, vestida de possibilidades.
"Ficas bem assim.", dizes.
Cheiras bem. O perfume tem massa
e se tem massa tem velocidade e os perfumes são
rápidos. Mas o perfume da aletria é tão imediato,
que ainda há pouco estava a fazer tranças com os
pensamentos e agora o mundo já me parece tão
possível como dantes e a solidão é, afinal,
só mais um sítio onde se pode pernoitar de quando
em vez.
Não percebo de onde trazes a claridade. Só sei que
hoje à noite a clarabóia é a janela de
uma nave espacial e eu deito-me
por baixo dela
de olhar fixo no silêncio,
sempre à espera de ver a Terra a aparecer
como quem sabe que a resposta vai estar no
vislumbre da centelha do que resta de luz.



Joana Manarte              

                       


                                                                                                                                                     Fotografia: Paulo Gaspar Ferreira



sexta-feira, 7 de novembro de 2014

a fisionomia do esquecimento



(Clicar em PLAY, pf.)

Remembering (Avishai Cohen), Tiago Enrique 



Ainda nem sabemos que há mais mundo
para além de nós e
já nos ensinam a fazer decalques
da vida com papel vegetal.
Ou a contornar a mão com um lápis.
Para depois a retirarmos e
ficarem os dedos lá espalhados no
papel, a dizer-nos que a infância
vai ficar por ali.

Para o caso de a quererem
encontrar mais tarde, arrumada e direitinha
entre os livros de uma estante, escrevam a data
o nome no canto da folha.
É como se nascêssemos para este ofício oculto
de decalcar a fisionomia do esquecimento.

E se calhar somos feitos de papel vegetal. Um dia
alguém há-de vir contornar-nos o rosto
com a mesma interrogação com que as mãos
de uma criança mexem nas flores abandonadas
por deus.


Joana Manarte


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

a ilha



(clicar em PLAY, p.f.)
A Ilha (Djavan), Ogre





Joana Manarte, 2014




Um facho de luz
que a tudo seduz por aqui
estrela cadente reluzentemente
sem fim
e um cheiro de amor
empestado no ar a me entorpecer
quisera viesse do mar e não de você
um raio que inunda de brilho
uma noite perdida
um estado de coisas tão puras
que movem uma vida
e um verde profundo no olhar
a me endoidecer
quisera estivesse no mar e não em você

porque seu coração é uma ilha
a centenas de milhas daqui.

Djavan


terça-feira, 5 de agosto de 2014

A verdade de cantar


Chavela Vargas (1919 - 2012)



Que se calem todos os sons da vida por um
minuto para que o mundo possa ouvir
para sempre o último suspiro de Chavela.


Joana Manarte | 05.08.2012






segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Istambul



(clicar em PLAY, p.f.)
chamamento para a oração em Istambul, recolha de áudio 2013



bem sei que era já noite escura
lá, onde parece haver sempre luz e um horizonte
fácil de imaginar por trás dos edifícios.
o contorno dos prédios era nítido
recortado contra aquele azul impossível.
eu já nem sei a que cheirava o ar
nessa noite mas era morno e fazia
os corpos leves, até
o lixo amontoado nos contentores parecia leve.
havia sons de modernidade à solta
buzinas, motores, electricidade, trânsito
apressado, injustificado, noctívago.
e acima da agitação, a pairar como
um véu que convoca os mistérios mais antigos do Bósforo
ouvia-se o chamamento para a oração
cantado ininterruptamente de mesquita em mesquita
como se a cidade fosse um só templo e aquela sequência
uma passagem de testemunho feita pela voz de
homens provavelmente perdidos entre a fé e o existir.
as melodias espalhavam-se pelo céu de
Istambul e ali
na varanda das portadas brancas, o meu peito
entregue ao vento e à geografia apetecida de uma solidão
que nunca pareceu tão acertada.


Joana Manarte


quarta-feira, 16 de julho de 2014

Elo Hi (Meu Deus)



(Clicar em PLAY, p.f.)
Elo Hi, Goran Bregovic & Ofra Haza



há lugares aonde deus tarda em chegar.

Joana Manarte




Campo de refugiados, Gaza 1960-70
(The Palestinian Museum)

Gaza 2012
(Paul Hansen, World Press Photo)

sexta-feira, 18 de abril de 2014

ora



(clicar em PLAY, p.f.)
Lonely Carousel, Rodrigo Leão & Beth Gibbons




virada para dentro
entro
e nada na boca
oca
a mudez faz eco
eco
na cabeça vazia
ia
um pensamento alado
lado
que parece escultura
cultura
de pássaros sós
ós
lamentos que acontecem
tecem
ideias que demoram
moram
apoiadas em janelas
nelas
que nos viram para fora
ora




Joana Manarte



segunda-feira, 10 de março de 2014





                                          Amanheci com o sussurro das estórias que ficaram por contar.
                                          A noite interrompeu-me o mundo. E agora?
                                          Quantas vezes vais ter que parar o tempo
                                          para colher as camélias que me sobram na boca?

Joana Manarte
Photo by Paulo Gaspar Ferreira


sábado, 25 de janeiro de 2014

Ao Carlos




(Clicar em PLAY, p.f.)
Arriba Monte, Brigada Victor Jara




Fotografia de Paulo Gaspar Ferreira
Púcaros Bar, Novembro 2008



A galope
um cavaleiro atravessava a noite.
Inútil perguntar-lhe
o que levava. Galopava.

À desfilada
atravessava noites, abismos, cidades.
Não lhe perguntásseis de onde veio,
aonde ia. Galopava.

Furacão
vingador, arcanjo desencadeado,
que resta do que foste? Já não és fogo
nem vento. És cinza, pó.
Mas galopas.


(Papiniano Carlos)