segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Marília



(Clicar em PLAY, p.f.)
Smile (Charles Chaplin), Bobby McFerrin



quando veio ao mundo
sorriu
como quem chega à missão
que lhe estava destinada.

continuo a achar que as rugas fundas
e ásperas das mãos eram o mapa
de um tesouro,
talvez a fórmula do riso
das crianças ou a explicação
para a permanência do espanto.

o verdadeiro calendário começou
aqui e trouxe consigo a mais sincera
mensagem de paz e amor entre os homens.

não sei se é segredo
mas hoje é natal.


Joana Manarte


terça-feira, 27 de outubro de 2015

free angola, fala política



(Clicar em play, p.f.)
 
Velha Chica, Waldemar Bastos





xê menino... posso morrer, posso morrer...
já vi Angola independente.

Velha Chica



houve um tempo em que vovó Chica dizia que
quando morresse queria ver Angola viver em paz.

nesse tempo aconteceram coisas que
mudaram os últimos versos
que lhe saíram da voz
e Chica pôde finalmente
morrer como sonhou:
independente.

hoje amordaçaram Angola
outra vez.

mas a velha Chica volta a cantar
versos que atravessam
a terra com a força
do magma e à superfície
explode um poema novo
que nos ferve
na garganta e nos
descruza os braços.

xê menino!,
chama.
ela sabe que
podemos mudar
as canções de
Angola para sempre.


Joana Manarte









quinta-feira, 24 de setembro de 2015

a charada de Budapeste



(clicar em PLAY, p.f.)
Nincsen Penzem, Szkojáni Charlatans




Budapeste, Setembro 2015


Há coisas por resolver aqui.

Dir-se-ia que há uma cidade oculta
paralela
que conspira.

Dir-se-ia até que essa cidade
a que conspira
só vai existindo
como circunstância
do passeante que deixou cair a sensibilidade
no detalhe certo
à hora certa
e apercebeu-se que há qualquer coisa
a querer rasgar o papel de cenário
dos palácios e das casas tão grandes
que não cabem
nas fotografias
porque a monotonia imperial
não cabe em lado nenhum e mostra-se
em tons neutros que não se querem
comprometer com nada
que exija responsabilidade maior
do que deixar escoar os dias
desinteressadamente pelo Danúbio
como quem assobia uma valsa
por ter testemunhado crimes e dores
que prefere disfarçar com o pó
de arroz que traz nos bolsos
porque Budapeste é como um
romance policial
um jogo de sombra e luz e
palidez e cor e
surdina e grito
ou canção
que às vezes é a mesma coisa
é uma questão de o passeante deixar
cair a sensibilidade
no detalhe certo
à hora certa
e ouve-se de vez em quando a língua
que esbarra nas ruas sem pontuação
e que
talvez por isso
parece não ter fim
e parece também ser feita
das línguas de todas as civilizações
e a cidade desdobra-se em adivinhas
e apontamentos coloridos
perplexos e insistentes na vastidão deslavada
das paredes austro-húngaras
que em cima das histórias de opressão
e balas
e bombas
clamam também
outros outroras
outros pigmentos
outras danças
que hoje parecem querer voltar a erguer
os copos de pálinka
enquanto festejam no antigo gueto a
tal cidade que se anuncia na música cigana
que traz a alegria nostálgica dos carrosséis
e ressuscita a afirmação tímida
dos chapéus como território de ilusões
das varandas decrépitas como território de flores e
dos tectos sem forças como território de bicicletas
que iluminam o que para já acontece nos olhos
do passeante que deixa cair a sensibilidade
no detalhe certo
à hora certa
e que assim
se junta aos que conspiram
a favor
da tal revolução que fala
connosco pelas fachadas
e que nos alicia como
um cubo de Rubik
que nunca se resolve
porque quando acabamos
o jogo e damos a volta
ao cubo para confirmar a vitória
ficamos uma e outra vez irresolutos
ao vermos que em cada face
que jurávamos ser de uma só cor
aparece sempre
um quadrado em ruínas
que nos intriga o sorriso
e nos rouba a palavra que vem a seguir a
esta.


Joana Manarte

terça-feira, 28 de julho de 2015

Buena Vista Social Club


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laranja amarelo torrado vermelho preto verde castanho terra convicção verdade força corpo sensualidade cantar nudez alegria rir beleza sensibilidade energia emoção os outros ver cativar envolver comunhão comoção independência dançar suor água rum mar música liberdade horizonte sempre.

trazem consigo
o vocabulário para uma certa
imortalidade talvez
para a imortalidade certa.

Buena Vista Social Club já não morre.
e ainda que desapareça
já nos mostrou essa maneira certa de
todos os dias
ensinar a morte a dançar.


Joana Manarte





 Buena Vista Social Club | Viana do Castelo, 2015
fotografia de Tiago Enrique



quarta-feira, 15 de abril de 2015

as manhãs deviam ser comboios a partir



(clicar em PLAY, p.f.)




"...os modos lentos do comboio não resultavam de incapacidade motora.
Eram, sim, gentileza. Uma afabilidade para com
essas pequenas mortes, que são as despedidas."

Mia Couto



as manhãs deviam ser comboios a partir.
talvez assim conseguíssemos saltar com a
vida inteira para o último vagão e
o último gesto já não fosse nosso.
a ter que ser nosso, que
fosse o movimento de uma nuvem
que fazes crescer devagar a embaciar
uma área pequena do vidro ou dos
meus olhos.
e quando essa nuvem
denunciasse que ali, naquela carruagem,
vai alguém que não sabe dizer adeus,
acabariam por saber do poema que
repetes à janela e que me encostas
aos olhos todas as manhãs
que deviam ser comboios a partir.


Joana Manarte



domingo, 8 de março de 2015

Shaking the tree



Hoje não quero flores. Quero uma árvore.
É preciso abanar uma árvore. Vamos.
Crava os pés no chão, agarra-a
pelo tronco e sacode-a com urgência até despontarem
dos ramos mulheres e homens livres.

E então sim, desse assombro colhe a novidade e
nas tuas mãos ainda trémulas
mostra-me as flores mais bonitas da tua história.


Joana Manarte






Souma Yergon, Sou Nou Yergon
We are shakin' the tree
Souma Yergon, Sou Nou Yergon
We are shakin' the tree


Waiting your time, dreaming of a better life
Waiting your time, you're more than just a wife
You don't have to do what your mother has done
She has done, this is your life, this new life has begun


It's your day, a woman's day
It's your day, a woman's day

Turning the tide, you are on the incoming wave
Turning the tide, you know you are nobody's slave
Find your sisters or brothers who can hear all the truth in what you say
They can support you when you're on your way


It's your day, a woman's day
It's your day, a woman's day

Souma Yergon, Sou Nou Yergon
We are shakin' the tree
Souma Yergon, Sou Nou Yergon
We are shakin' the tree


Changing your ways, changing those surrounding you
Changing your ways, more than any man can do
Open your heart, show him the anger and pain, so you heal
Maybe he's looking for his womanly side, let him feel


You had to be so strong
And you do nothing wrong, nothing wrong at all
We're gonna break it down
We're gonna shake it down, shake it all around

(Peter Gabriel)