domingo, 30 de novembro de 2014

a mulher de branco


(clicar em PLAY, p.f.)
Ave Maria (Bach), Yo Yo Ma & Bobby McFerrin



à Marília




Às vezes começas na solidão. Continuas
a ser tu a verter-me leite nos olhos para me
acalmar a paisagem quando o futuro insiste
em rondar como um cão desconfiado.
Trazes a paz como um manto a cobrir-te
as costas. Pousas perto e mudas-me a roupa
à imaginação. Vou ao espelho. Acho que
fico bem assim, vestida de possibilidades.
"Ficas bem assim.", dizes.
Cheiras bem. O perfume tem massa
e se tem massa tem velocidade e os perfumes são
rápidos. Mas o perfume da aletria é tão imediato,
que ainda há pouco estava a fazer tranças com os
pensamentos e agora o mundo já me parece tão
possível como dantes e a solidão é, afinal,
só mais um sítio onde se pode pernoitar de quando
em vez.
Não percebo de onde trazes a claridade. Só sei que
hoje à noite a clarabóia é a janela de
uma nave espacial e eu deito-me
por baixo dela
de olhar fixo no silêncio,
sempre à espera de ver a Terra a aparecer
como quem sabe que a resposta vai estar no
vislumbre da centelha do que resta de luz.



Joana Manarte              

                       


                                                                                                                                                     Fotografia: Paulo Gaspar Ferreira



sexta-feira, 7 de novembro de 2014

a fisionomia do esquecimento



(Clicar em PLAY, pf.)

Remembering (Avishai Cohen), Tiago Enrique 



Ainda nem sabemos que há mais mundo
para além de nós e
já nos ensinam a fazer decalques
da vida com papel vegetal.
Ou a contornar a mão com um lápis.
Para depois a retirarmos e
ficarem os dedos lá espalhados no
papel, a dizer-nos que a infância
vai ficar por ali.

Para o caso de a quererem
encontrar mais tarde, arrumada e direitinha
entre os livros de uma estante, escrevam a data
o nome no canto da folha.
É como se nascêssemos para este ofício oculto
de decalcar a fisionomia do esquecimento.

E se calhar somos feitos de papel vegetal. Um dia
alguém há-de vir contornar-nos o rosto
com a mesma interrogação com que as mãos
de uma criança mexem nas flores abandonadas
por deus.


Joana Manarte


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

a ilha



(clicar em PLAY, p.f.)
A Ilha (Djavan), Ogre





Joana Manarte, 2014




Um facho de luz
que a tudo seduz por aqui
estrela cadente reluzentemente
sem fim
e um cheiro de amor
empestado no ar a me entorpecer
quisera viesse do mar e não de você
um raio que inunda de brilho
uma noite perdida
um estado de coisas tão puras
que movem uma vida
e um verde profundo no olhar
a me endoidecer
quisera estivesse no mar e não em você

porque seu coração é uma ilha
a centenas de milhas daqui.

Djavan