(clicar em PLAY, p.f.) chamamento para a oração em Istambul , recolha de áudio 2013 bem sei que era já noite escura lá, onde parece haver sempre luz e um horizonte fácil de imaginar por trás dos edifícios. o contorno dos prédios era nítido recortado contra aquele azul impossível. eu já nem sei a que cheirava o ar nessa noite mas era morno e fazia os corpos leves, até o lixo amontoado nos contentores parecia leve. havia sons de modernidade à solta buzinas, motores, electricidade, trânsito apressado, injustificado, noctívago. e acima da agitação, a pairar como um véu que convoca os mistérios mais antigos do Bósforo ouvia-se o chamamento para a oração cantado ininterruptamente de mesquita em mesquita como se a cidade fosse um só templo e aquela sequência uma passagem de testemunho feita pela voz de homens provavelmente perdidos entre a fé e o existir. as melodias espalhavam-se pelo céu de ...
Acontece que há fábulas urdidas de porvir. O batom que a boca espera no camarim do próximo palco. A melodia que ouço do pássaro que ainda não sabe que vai pousar na varanda do quinto andar. O sal que lambo da pele depois do mergulho na onda que se há-de formar antes da espuma. Conjecturar o futuro é ofício ancestral. Contou-me uma pedra sobre um auroque sulcado na rocha por um homem que desenhava à luz que lhe crepitava no peito, com certeza por saber já dos meus olhos vindouros de espanto ao chegar perto da figura. Nada sabemos sobre quem imaginou quem primeiro, se foi seu sorriso nómada que atravessou milénios ou meu olhar que espreitou por cima do ombro e tropeçou no paleolítico. Mas a poesia rupestre, quase impossível linguagem gravada sobre o tempo, ora côncavo, ora convexo, sopra para longe os sedimentos que empoeiram os corações e vem à tona do xisto uma missiva e respira que o amor é um círculo, ora côncavo, ora convexo, que a escrita do mundo reproduz. Entontece-nos no mar a o...
regressava a casa, o pensamento a inaugurar a noite. liguei o rádio do carro, mudei para a opção CD e em poucos segundos Prince fez-me olhar nos olhos do retrovisor dearly beloved we are gathered here today to get through this thing called life.* saí do espelho com determinação de passerelle e logo espetei a imaginação contra um camião do lixo. a via era de sentido único, uma faixa de rodagem sem escapatória possível. desliguei o motor, observava as movimentações os fatos a luzir como mirada de gato a cor que parece sempre duvidar entre o verde e o amarelo os gestos repetidos até à eficiência o voo avulso dos sacos de plástico, sobras da vida a pairar sobre as cabeças. saí do carro para me ver do alto, ao volante, atenta à performance tão citadina, tão noturna, tão antiga. a imagem assomou-se como experiência velha, já por outras vezes vivida naquela mesma rua, quem sabe sobre os mesmos paralelos, num tempo em que o banco de trás era o meu reinado. electric word, life. it means forever...
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